Não é rebeldia.

                Um dia você acorda e duvida de tudo o que aprendeu, duvida dos dedos que te foram apontados, das besteiras que fez, das orações que fez aos pés da cama e dos altares em que se ajoelhou, duvida dos beijos que deu, duvida dos meninos e das meninas. Duvida dos seus professores e dos seus pais. Duvida dos seus mestres, dos seus deuses, duvida do escuro do espaço, duvida de você mesmo. E se sente pequeno e descobre que se sentir assim é normal, e não é crime, e é até certo: somos realmente pequenos, mas juntos somos gigantescos. E começa a procurar quem duvide contigo. E vai começar a construir certezas que façam sentido – que sejam realmente verdadeiras.

                Não é rebeldia, isso é depois da rebeldia. É uma dúvida calma, é o olhar de um cientista apaixonado pela vida, é um mar revolto de correntes. Não é negação. É questionamento: você, um dia, decide descobrir o mundo por você mesmo, decide por em questão tudo o que foi dito, decide limpar suas prateleiras de recomendações e arrumá-las por você mesmo. Decide olhar a validade dos frascos dos conselhos. Podem dizer por aí que é egoísmo. Eu me atrevo a dizer que é libertação e é maravilhoso e é difícil.

                Primeiro é atravessar a rua sozinho. O desafio é saboroso e perigoso. Depois de descobrir que somos responsáveis por tudo o que causamos nos outros e em nós mesmos, descobrimos o perigo. E é realmente delicioso e perigoso.

É olhar os animais de dentro da floresta, não no zoológico. É pular no rio escuro, no meio da noite, porque só colocar os pés na beirada da água já não serve mais. É fazer a história e não só lê-la e ouvi-la nos livros. E você entende que “fazer história” não é nada tão grandioso perante os outros, mas é monumental dentro de você. Fazer história é um vagaroso lembrar-se das suas paixões. É viver devagar e cuidar de ser genuíno com você e com o mundo, e entende que mentira é algo que você não quer viver. Você não quer comprar mentira, não quer comer mentira, não quer rir de mentira, não quer beijar e deitar com mentiras, não quer desejar mentiras.

É descobrir o que é mentira, o que é aparência e o que é real pro seu coração, e o que faz sentido. E fazer história é um assumir de queixo erguido seu lugar, seu ponto de vista, e mesmo assim falar de certa forma mansa e direta, e aceitar algumas perdas importantes por causa disso. É chorar de peito aberto, e talvez seja também o aprender a pedir perdão, uma das coisas mais difíceis. Ainda somos orgulhosos e fazer sentido é também reconhecer que alguns dos caminhos que escolheremos estavam errados – e teremos que, às vezes, assumir violentamente as consequências por causa desses erros. E que isso também é estranhamente libertador.

Um dia você acorda e quer ser coerente e quer fazer o bem, para os outros e para você mesmo e quer que seu coração pulse certo enquanto tiver que pulsar. Você acorda e misteriosamente parece que cresceu uns dois ou três centímetros – foi a sua postura que mudou, você não se curva, não se esconde mais. Você parece ter o rosto mais certo no espelho, e encara mais de frente, e fala mais claro. E não sabe como vai fazer pra chegar onde quer chegar, mas que caminhar vai ser cansativo e vai ser uma delícia e vai ser difícil e está pronto pra isso.

E de repente nesse dia você também percebe que raízes são preciosas. Um dia você descobre também que seus pais – que te aconselharam, e de quem você duvida, às vezes – que eles também duvidaram. E os olha mais de perto, com olhos mais humanos e percebe como eles se aproximaram ou se afastaram de muito que queriam. Percebe o quanto eles conquistaram, com o que eles se contentam. E às vezes fica mais fácil entende-los. Ou muito mais difícil. E se admira de perceber que talvez algumas reações suas – além dos olhos, do sorriso, da covinha, da voz – talvez sejam fruto da genética. E você não os julgará porque entende o valor do passado e põe o valor do passado de volta na prateleira dos valores e dos conselhos – esse remédio não tem validade.

Talvez você vislumbre que terá que mudar um pouco seus planos e também está tudo bem. Viver é dançar e não se dança sozinho. Você quer aprender e absorver que você também é aqueles a quem se mistura. Você deixa o medo das mágoas de lado, você tem mais calma, você aprende a dividir. As pessoas que você permite entrar na sua vida, nos seus olhos, nos seus pensamentos e no seu ninho: elas vão pulsar da mesma maneira que você e é isso que vocês irão buscar e isso significa adaptar os planos, não mudar as direções – e vai descobrir que se vocês não querem dividir sorrisos matinais e refeições de mentira, que o resto é libertador o bastante para descobrir suas próprias respostas e suas próprias maneiras de amar, e seus próprios apelidos e carinhos. Que amar é libertador e não tem nada a ver com dias parados e falta de criatividade, mas com muita mágica e colorido impressionante dentro da realidade.

Um dia você entende que mais pessoas buscam as mesmas coisas, e percebe quando é mentira, e também o fato de ser mentira é apenas uma questão de tempo, elas apenas ainda não acordaram nesse mesmo dia. Você aprende a ser paciente e a dar a cada um seu peso e sua medida.

E talvez um dia todos nós entendamos que o importante é a qualidade do que vivemos nas 24 horas que temos em cada dia que acordamos e a energia que deixamos em cada lugar onde vamos. E que o mais importante de se ter um objetivo é sempre ter porque caminhar. Porque o caminhar é de costas retas, sem ter porque se esconder e é de cara limpa e é fazendo o bem e é fazendo certo.

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